Kuro: Cidade Elétrica

 

Desde que surgiu como uma aposta ousada dos amigos Anésio Vargas e Alexandre Seba, a New Order Editora tem mostrado que uma de suas facetas é apostar em RPG’s menos tradicionais e mais inusitados.

Depois do épico financiamento do Yggdrasill, aos poucos a editora vem mostrando suas cartas. E numa dessas eu estou no meio!

KURO é um RPG publicado na França pela 7eme Cercle (a mesma editora do Yggrasill) e em inglês pela Cublicle 7 (responsável pelo nosso conhecido O Um Anel). Trata-se de um RPG de temática cyberpunk, com grandes doses de horror nipônico.

Em 2046, o Japão encontra-se isolado depois de um incidente internacional sobrenatural, e nesse mundo de alta tecnologia, o secular e o sagrado (ou maldito) unem-se para deixar as pessoas ainda mais confusas. Pense em Akira, Ghost in the Shell, Serial Experiments Lain e você começa a ter uma ideia do que o cenário proporciona.

Estou tendo a honra de trabalhar como tradutor do Kuro, que deve ser o meu segundo RPG traduzido (o primeiro ainda não saiu, e é… segredo). E pra situar vocês melhor sobre esse futuro lançamento, trago a tradução do conto introdutório do livro, “Cidade Elétrica“.

KURO deve ser publicado em 2015. Se quiser saber mais sobre o sistema de jogo e uma opinião abalizada, sugiro as resenhas do amigo Brega Presley, encontradas NESSE e NESSE link.

Fiquem com “Cidade Elétrica”!


 

“Enquanto somos crianças, nós falamos como crianças, pensamos como crianças e conversamos como crianças. Mas ao nos tornamos adultos, devemos matar a criança dentro de nós.”

Mamoru Oshii, Ghost in the Shell

Ventos violentos faziam vibrar a estrutura da nossa patrulha, as rajadas sacudiam o veiculo todo, mas sem desviá-lo de sua trajetória programada. Graças ao piloto automático, estávamos presos atrás de um carregamento de peixe sintético, sem dúvida para o Mercado Tsukiji. O painel de controle sensível ao toque no para-brisa transparente previa outro tufão prestes a atingir a baía de Shin-Edo. Isso não era mais novidade.

Por vários minutos no pesado calor da cabine, eu assisto meu parceiro sorver energicamente seu soba, que ele foi pegando cuidadosamente de uma caixa de papelão marcada com um símbolo Koi vermelho. Concentrado e preciso, ele agarra os pedaços rosados de macarrão com os pauzinhos e leva-os à boca, onde eles batem em seus lábios antes de desaparecer. Sorrindo ironicamente como sempre, Gonshiro não percebe que seu uniforme e o assento do carro estão salpicados com molho mirin proto-calórico. Gonshiro é geralmente bem comportado na companhia de mulheres, mas nós temos sido parceiros a tempo demais para ele se incomodar por minha causa.

“Quantos pacotes você comeu, Gonshiro?”

Ele me fita sarcasticamente enquanto suga os dois últimos fios de macarrão antes de responder. “Ah, eu não sei. Talvez quatro pacotes.”

“Você sabe que mesmo os melhores alimentos farmacêuticos não fazem mais efeito se você tomar quatro vezes a dose correta? “

“Sim, eu sei. Mas eu amo esse novo sabor de Camarão, o gosto é quase de verdade! Honestamente, Nao, se você provar o lamen ou o yakisoba do FujiLab’s, não vai querer outra coisa!

“Estou falando como amiga. Você sabe que com os novos biochips que eles injetaram na última semana, eles podem descobrir rapidamente que seu regime alimentar está desequilibrado? Eles só tem que verificar o seu monitoramento para ver se você ainda é capaz de exercer seu trabalho. Ouvi de um policial do Distrito Especial de Shinjuku, que foi suspenso quando a sonda encontrou anfetaminas em seu sistema…

“Todos nós precisamos de algo que nos ajude a passar o tempo”

“Claro… Eu tenho exagerado no chocolate recentemente.”

O martelar da chuva abafa nossas vozes e as espessas nuvens mergulham nossos rostos nas sombras, dissipadas pela iluminação do painel e pelas luzes de neon da cidade. A patrulha finalmente abandona a via expressa, seguindo seu curso até o nosso destino – Akihabara.

Enquanto Gonshiro terminava a quarta refeição do dia, o noticiário repete a notícia sobre o bloqueio que foi erguido em torno do Japão há quase seis meses. Dou uma rápida olhada para o banco traseiro, onde se encontra minha mochila. Eu hesito por alguns segundos, em seguida, pego-a e retiro dela um saco plástico grosso, contendo uma curiosa corda trançada com palha de arroz e um pequeno saco de pano.

“Ei! Essas são… *tosse*,”Gonshiro reage imediatamente, se engasgando com a comida.

“Eu sei.”

“Importa-se em me dizer o que… *tosse*… o que você está fazendo com uma Shimenawa e um Omamori… *tosse*… Nao?”

“Não sei. Eu os encontrei do lado de fora do meu apartamento essa manhã. A corda estava no saguão e o amuleto foi deixado no chão.”

“Desde quando seu apartamento é um templo xintó? A corda trançada – a Shimenawa – serve para indicar o local de um espírito, um kami, certo?”

“Normalmente sim. Parece que tenho um morando comigo. Acredito que isso não vai dar certo, pelo tamanho da minha cama…”

Gonshiro explode em gargalhadas. Então pergunta, seus olhos subitamente mais vivos, “Posso dar uma olhada no amuleto?”

“Claro.”


Akihabara – a “Cidade Elétrica,” o bairro de Shin-Edo onde você encontra a maior quantidade de engenheiros de robótica e especialistas em computadores e máquinas na cidade. Com a expansão da robótica e a chegada de androides em cada setor da economia, do uso doméstico à limpeza urbana, Akihabara se tornou um mercado de pulgas para inteligência artificial. Em seus becos cobertos, onde pequenas lojas de eletrônicos jazem abaixo de placas holográficas gigantescas, as inconfundíveis silhuetas de androides trabalham noite e dia para atender sua clientela. Eles foram os escolhidos pela sociedade para compensar nossa diminuição demográfica, que preferiu seres artificiais à imigração, enquanto nascimentos são cada vez mais controlados para atender às necessidades coletiva. Já fazem anos desde a última vez que me deparei com uma grávida na rua, sem dúvida porque tornou-se ilegal procriar sem autorização. O Japão virou um gigantesco aquário onde os peixes aprenderam a controlar meticulosamente seus recursos, para gerir sua própria hereditariedade. Como tantas outras, eu não tenho permissão de conceber.

Tenho orgulho do meu país. Sempre tive. Inúmeros esforços e progressos nos permitiram, aos poucos, nos tornar autossuficientes, usando nossa zona rural deserta para desenvolver imensas fazendas hidropônicas estatais. Nossos cientistas conseguiram criar rebanhos aquáticos artificiais ou clonados, descobrindo novas fontes de energia como as baterias fotonanovoltaicas, e criando novas tecnologias como os cristais fotônicos e polímeros flexíveis. Laboratórios biotecnológicos se multiplicaram, substituindo rapidamente as enormes corporações industriais. Mas essa política nacional teve consequências igualmente perceptíveis em nossa cultura. Nos não distinguimos mais as pessoas apenas pelo seu nome, sua família, sua riqueza ou origem, mas também por seu acesso à nanotecnologia, à manipulação genética e à benefícios da tecnologia médica, que transforma os mais ricos em espécimes completamente novos e perfeitos. Enquanto isso nós, os “naturais” continuamos vivendo nossa vida em uma comunidade tão regrada quanto uma partitura musical.

Hoje em dia, não somos nós quem escolhemos nos desconectar do mundo, mas o próprio mundo que nos isolou.

“Aqui estamos” anuncia Gonshiro, ativando o fluido em seu uniforme azul para secar as manchas de comida.

Na parte de trás de um edifício com uma fachada desbotada, situado próximo à linha de metrô Yamanote, um cordão policial denota a cena de um crime com marcadores luminosos. Na meia-luz, dois policiais à paisana parecem estar trabalhando na chuva, suas capas ultrassônicas impedindo-os de ficarem completamente encharcados. Saindo do carro-patrulha, sou imediatamente escaneada por um anúncio de parede que eu não tinha notado. A linda mulher no cartaz holográfico parece estar entregando-me um creme de beleza com um sorriso surreal, o tempo todo alardeando suas qualidades:

“Otawara-san, você tem apenas 28 anos de idade, mas nunca é cedo para experimentar SweetSkin, o creme de extrato de algas revitalizante dos Laboratórios YumiCorp.”

Eu rapidamente me reúno à Gonshiro, cujas luvas macias cobertas de filamentos azuis estão aos poucos assumindo uma tonalidade carmesim.

“Não há dúvidas quanto à isso, tem sangue por aqui,” ele anuncia.

Próximo ao cordão de isolamento, outra propaganda cansativa lê minha retina em instantes, e com ela o meu ID, para melhor se adaptar ao meu perfil.

“Ainda solteira, Otawara-san? Você já conhece o androide Yoshi X635 e sua gama de ‘opções de massagens,’ desenvolvidas especialmente para seu bem-estar? Com uma personalidade programável, nosso androide saberá como agradá-la e cuidar dos seus mais íntimos desejos.”

Gonshiro sequer ousou olhar para mim, com vergonha de encontrar meu olhar após o anúncio, que também lê seus olhos e começa a contar-lhe as mesmas virtudes de um androide de prazer similar. Limpando pingos de chuva de sua viseira, ele simplesmente acrescenta:

“Todos estes painéis publicitários estão se tornando um pé no saco. Eu tenho um do macarrão de camarão do FujiLab bem em frente onde eu moro. Então você vê que eu tenho uma desculpa…”

Volto-me para a cena do crime, e a visão do corpo imediatamente me dá uma dor no ombro, como se meus músculos estivessem reconhecendo a marca do seu algoz e encolhendo de medo.

Banhada em uma piscina carmim diluída pela garoa, o corpo de uma mulher jazia de costas, ainda enrijecido pelo sofrimento. A roupa rasgada mostrava seus músculos expostos e ossos esfolados. Ao lado de sua cabeça, bem à vista, dois polegares e dois dedões foram cuidadosamente cortados das mãos e pés da vítima. Olhando para o céu opaco com um único globo ocular, a mulher com longos cabelos castanhos parece estar implorando aos céus para pôr um fim ao seu tormento. Apesar do estresse martelando em minhas têmporas, tento manter a calma para não constranger meu parceiro. No entanto, apenas algumas semanas atrás, eu poderia me encontrar no lugar desta menina…

“Inspetores Chiba e Otawara do distrito de Minato, estamos no comando da investigação “, diz Gonshiro enquanto os dois outros policiais fazem uma varredura em nossas retinas para verificar as identidades, fazendo nossas íris brilharem com o pequeno dispositivo de prata.

Como sempre, Gonshiro não perdeu tempo e sacou uma dúzia de nanodrones dos bolsos da jaqueta enquanto eu analisava o cadáver meu visor metabolímico. As pequenas esferas prateadas colocadas por Gonshiro sobre a pele sangrenta se ativaram rapidamente e começaram a penetrar a carne com as suas mandíbulas de escavação microscópicas, seu trajeto através das entranhas ocasionalmente visível à medida que o diodo vermelho em sua carapaça brilhava através da pele. Em poucos minutos, teríamos dados suficientes para confirmar a hora e a causa da morte. No momento, me contento em apenas escanear o olho intacto da infeliz mulher para descobrir sua identidade. A luz do meu controlador pisca numa fração de segundo no fundo de sua córnea, dando-lhe a expressão do brilho fugaz de uma vida já extinta. Os dados recebidos são exibidos instantaneamente no meu campo de visão, enquanto Gonshiro sente o chão e as roupas dela com suas luvas cobertas de nanocaptores, para descobrir quaisquer outros vestígios químicos.

“Matsunaga Fumiaki. Ela trabalhava em uma loja em Asakusabashi, a poucos metros daqui. Trinta e dois anos de idade, sem antecedentes criminais, não houve acidentes significativos ou modificações biogênicas. Você tem mais alguma coisa? “

Gonshiro parece obcecado pela imagem molecular aparecendo em seus óculos de controle, olhando para todas as informações transmitidas pelos drones. Após um momento de hesitação, os olhos ofuscados pela multidão de telas luminosas, ele confirma decisivamente:

“A hora da morte foi precisamente 33 minutos e 56 segundos atrás, de acordo com dados cardíacos dos parasitas. Como de costume, não há nenhum traço de DNA diferente do da vítima, nem de qualquer abuso sexual. Ela foi destroçada viva, as terminações nervosas cortadas. Eu acho que é o nosso Escapelador novamente … Eu encontrei as mesmas partículas de metal nas feridas da última vez. “

Número seis. A sexta vítima daquele que apelidamos de “O Escapelador”, que passou as últimas semanas rasgando a pele e a carne de suas vítimas, por alguma razão desconhecida. Ele deixa como assinatura dois polegares e dois dedos do pé, cortando-os como se fizesse um duplo “OK” para o tabu da morte. Desde o nosso último encontro ele aumentou sua violência e brutalidade: ele não é mais feliz com apenas alguns cortes cirúrgicos, agora esfola sua presa com a fúria de um lunático.

Eu o tive sob custódia por alguns segundos uma vez, com minha arma apontada para ele num beco em Kabuki-cho. Topei com ele durante uma patrulha solitária: alto, magro, vestindo um sobretudo bege e comprido, com um chapéu pesado cobrindo suas feições. Ele tinha esquartejado cuidadosamente uma pequena garçonete do Hina Sushi por trás da porta de uma ótica. Com suas mãos cobertas de sangue, ele não tinha percebido que eu estava pronta para disparar, quando uma dor insuportável atacou meu ombro direito, meu próprio sangue salpicando a parede a meu lado. Sem fôlego, eu caí no chão sem ter tempo de apertar o gatilho, sem entender o que tinha acontecido comigo. Imediatamente, meu veículo enviou um pedido de socorro às demais patrulhas do setor, depois de ter analisado o estado dos meus ferimentos transmitido pelo uniforme. Quando recuperei a consciência alguns dias após o ataque, eu estava imersa no fluido de uma Cápsula Médica. Eu tinha sido misteriosamente poupada pelo assassino, embora não saiba por quê.

Inúmeros policiais, com o seu ombro e músculos destruídos por uma arma afiada, teriam abandonado o seu posto por um trabalho burocrático ou até mesmo para um novo emprego em um sushi-ya. A maioria, sem a honra de terminá-lo de uma vez por todas, prefiria isso do que encerrar sua carreira na polícia Shin-Edo como eu.

Tive a sorte de ter um pai trabalhando para um dos muitos laboratórios da cidade, uma daqueles que trabalhavam com a “Genocracia”, composta pelas pessoas mais ricas do país, enclausuradas em seus prédios de vidro, imortais ou simplesmente transformados em divindades pelos milagres da ciência e da biotecnologia. Eu nem sei onde ele encontrou o dinheiro necessário para aquela cirurgia caríssima, e eu me recusei a perguntar-lhe antes do final de sua vida, para não desonrá-lo ou perder seu respeito. O fato é que ele conseguiu reconstruir meu ombro, substituindo as partes destruídas por um novo esqueleto e uma rede de tecido biomecânico. Este conjunto perfeito de produtos orgânicos clonados e melhorias cirúrgicas também aumentou minha força o suficiente para que eu não tremesse quando estivesse mirando um bastardo psicopata de sobretudo.

Gonshiro me acorda do meu devaneio, acrescentando mais detalhes à sua análise inicial:

“Já confirmei a liga metálica. É definitivamente plexialuminium classe 135. O mesmo dos outros, e o mesmo que encontramos em seu ombro. Você está pensando em alguma coisa, Nao? “

“Sim.”

Eu me viro para os dois agentes ao fundo, sem sequer me importar em retirar meu imponente visor metálico coberto de condensação.

“Procurem e tragam-me as últimas leituras dessas duas propagandas reativas, por favor.”

Eles obedecem rapidamente ao meu comando com um aceno de cabeça, antes de improvisar uma ligação.

“Por quê? Você quer comprar um androide Yoshi para testar sua nova corda de espíritos? ” zombou Gonshiro.

“Escute, nós podemos muito bem estar em uma rua muito tranquila, e pode muito bem ser uma hora relativamente avançada, mas você nunca vai me fazer acreditar que um único homem é tão rápido que ele pode rasgar uma mulher viva em pedaços sem deixar alguns vestígios de sangue para trás.”

“Você está esquecendo a chuva, Nao, e 33 minutos é muito tempo para um perito sua área de atuação”, acrescentou Gonshiro, observando os raros transeuntes olhando para longe e acelerar o passo depois de ver o corpo.

“Desde aquela noite eu estou obcecada por esse cara, Gon. Não há um único dia, uma única noite, que ele não está lá, perfurando meu crânio com aquele olhar ausente. Eu não senti nada nele quando o vi, nada mesmo. Nem raiva, nem medo, nem tristeza, nem alma. Ele estava a dez metros de mim, ocupado dissecando a pobre garota, e mesmo assim conseguiu chegar até mim enquanto eu o tinha na minha mira…”

“Temos visto várias coisas bizarras, desde o Incidente Kuro. Nada mais me surpreende.”

Seis meses. Por seis meses, o Japão foi preso num perverso aperto de um bloqueio global, após a tentativa da Federação Panasiatica para aniquilá-lo com um ataque nuclear de vários gigaton. As informações sobre esse assunto são vagas, muitas vezes contraditórias e viraram objeto de análise tendenciosa pela mídia. Tudo o que sabemos é que um terremoto de cerca de 8,5 graus na escala Richter enganou os sistemas de defesa da Federação, desencadeando um ataque de retaliação por engano contra seus dois principais adversários: Índia e nós. Um dos mísseis falhou, explodindo sobre a Coréia do Norte. Mas, tão certamente quanto a Coreia do Norte e os milhões de vítimas mortas em um único instante nunca vão se recuperar da destruição desse míssil, ainda estamos de pé.

Exceto se a verdade seja que estamos todos mortos.

O restante atingiu seu alvo corretamente, mas nunca explodiu. Fomos todos ofuscados no mesmo instante, por uma luz brilhante que emergiu do meio de rajadas gigantescas de vento, que ainda continuam a varrer o país. Mas o míssil desapareceu, sem criar um único cadáver, sem destruir a menor parcela de nossa terra natal.

Nossos aliados viram um escudo de energia desconhecida ganhar vida, uma criação formidável que certamente visava proteger o Japão. Eles decidiram que uma defesa tão poderosa teria apenas uma intenção: um plano de guerra. Eles falavam que quebramos o Nono Artigo da nossa Constituição, do nosso rearmamento secreto, e de nossos desejos de conquista sufocados durante o último século. Os Estados Unidos exigiram respostas e os detalhes deste escudo defensivo. Mas nós também não sabíamos o que era o escudo, e nossos aliados foram confrontados com um governo balbuciante, incapaz de se explicar. Indignado com as acusações, nosso Imperador ordenou ao Primeiro-Ministro para dar uma resposta severa diante do vexame global. Desde que aprendemos a viver em um país fechado, temos que continuar a fazê-lo sem os nossos antigos aliados . Desde que os outros países pararam de negociar conosco e consolidaram um bloqueio econômico orquestrado pela China e pelo bloco ocidental, nós não fomos incomodados..

O bloqueio durou por seis meses até agora. Seis meses, quando o Japão teve de confiar apenas em si mesmo, na sua capacidade de gerir seus próprios recursos, para reciclar, para assistir pacientemente enquanto os navios de bloqueio teciam uma barreira em torno de nossas ilhas. Durante seis meses, tivemos de lidar com a escassez, o medo, as tensões que se escondem atrás das faces impassíveis de cada habitante desta cidade. E quanto mais semanas passam, mais fenômenos estranhos ocorrem, e mais digo a mim mesma que estamos presos com monstros reais. Todos os dias as pessoas desaparecem, ou morrem em circunstâncias inexplicáveis, misteriosas, cercadas pela indiferença de uma população preocupada demais com o seu futuro.

Em 4 de maio de 2046, no dia do impacto, algo mudou, algo escuro, mas poucos estão dispostos a acreditar.

“Eu tenho os resultados solicitados sobre os anúncios, tenente Otawara”, anuncia o segundo policial educadamente. “Estou enviando-os para o seu Pod.”

Tão rápido quanto a luz, os dados coletados são transferidos para o meu computador portátil, brilhando no meu pulso em seu plasma orgânico colorido. Como todas as capitais do mundo, Shin-Edo – a nova Tóquio – tornou-se uma cidade de luz, onde os microfotônicos substituíram os antigos circuitos impressos. Computadores, andróides, terminais de comunicação, publicidade, Pod’s, todos são ligados através de fibras fotônicas instantâneas, capazes de trocar uma vida inteira de dados à velocidade da luz. Adeus aos cabos e viva o laser, e viva a memória universal dos novos computadores, capazes de armazenar todas as suas conversas desde o dia de seu nascimento até a eternidade.

“Tirei a sorte grande, Gonshiro!”

Ele olhou para mim, perplexo, por baixo do visor embaçado do seu capacete, manuseando cuidadosamente os dedos e polegares .

“Nesses arquivos eu tenho o rastreamento de todos que foram escaneados essa noite por essas propagandas interativas na parede. Ninguém pode ter passado aqui sem ter sido digitalizado pelos lasers reativos, como você pode atestar pelo modo como fui pega assim que desci do carro! No registro de pessoas digitalizadas, encontrei somente cinco pessoas escaneadas depois que nossa vítima passou. O primeiro é o homem que encontrou o corpo, apenas dez minutos após Matsunaga Fumiaki ter sido escaneada. Em seguida, os agentes que chegaram vinte minutos depois à cena do crime, e por último, nós dois.”

Com um olhar estupefato e com a boca aberta como um baiacu fora dágua, Gonshiro tenta entender o fluxo de palavras que despejei rapidamente em meu entusiasmo. Pouco inclinado a mostrar a sua confusão, ele se contenta com um simples:

“E?”

“E? E? Não há rastros de uma sexta pessoa! Isso significa simplesmente que o assassino não foi escaneado durante todo o tempo que esteve aqui, portanto, que ele não tinha retinas e cometeu seu crime há apenas dez minutos em vez de 33! Fumiaki ainda estava viva quando seu corpo foi descoberto. Você não entende? Devem ter passado vários…”

Saco minha Pistola Elétrica como um raio e aperto o gatilho, fazendo voar um pesado container de lixo que jazia no beco, com um pulso eletromagnético. A caixa metálica amassa com o choque, e bate contra a recepção de um motel. Depois de um segundo de hesitação, a sombra por trás da rampa de lixo decide fugir para escapar de um segundo (e mais preciso) disparo.

“GONSHIRO!”

Eu me lanço no encalço da silhueta, detectada pelo meu capacete enquanto ele estava nos espiando, sem dúvida, desde a nossa chegada. Meu parceiro, com as mãos cheias de dedos e polegares decepados e com seu estômago, sem dúvida, demasiado pesado por causa do macarrão, leva alguns segundos a mais para me seguir.

O suspeito é rápido, entrando em diversas passagens estreitas para se livrar de mim o mais rápido possível. Graças à minha vestimenta, eu ganho mais e mais velocidade, aproveitando a melhoria das articulações do traje para ganhar terreno.

Concentrando-se em meu alvo, quase não ouço o zumbido da minha arma e das baterias no meu uniforme, que recarregam com meus movimentos, na ausência de qualquer luz natural. Atrás de mim, eu ocasionalmente ouço os passos distantes do meu parceiro e sua respiração ofegante. Não tenho esse problema; possuo células aprimoradas no meu corpo cuidando de acelerar a circulação de oxigênio em meus pulmões e músculos.

Grades. O homem já as pulou, e eu não tenho tempo a perder. Saco minha Pistola Elétrica, perfurando o metal enferrujado na minha frente com uma explosão, e a cerca some antes de eu chegar nela. Minha presa continua fugindo, sem olhar em volta. Sem chapéu, sem casaco, um calor corporal constante de acordo com meus sensores, e um raio de um velocista.

Na curva de uma esquina, esbarro com duas velhas senhoras que saem de sua casa e erro por pouco uma garota pilotando uma Eletro-Motoneta de cores ácidas. Gonshiro não é tão ágil: ele se choca com ela a todo vapor antes de ser xingado ferozmente.

Ao nosso redor, os carros freiam automaticamente, os poucos veículos sob controle manual autorizado passam raspando nos automóveis mais azarados que acabaram colidindo. À minha frente estende-se um parque verdejante, sombrio sob a espessa cortina de chuva, um caminho aberto no qual o fugitivo não hesita em atirar-se. Minhas botas batem contra as poças, meu traje fica encharcado, meu cabelo gruda no rosto, mas eu seguro minha arma com firmeza, os nós dos dedos esbranquiçados. Cruzo as trilhas do parque em alguns passos, antes de perceber estar numa uma longa avenida de pedra sob densa folhagem. Um pesado portão torii vermelho brilhante indica o caminho para um santuário Xintó. Calma e paz substituem suavemente o rugido da cidade. O sacudir dos galhos e o murmurar da água reforçam o aspecto sagrado desse caminho espiritual. Parando antes do arco simbólico, eu calmamente aponto minha arma em direção a uma árvore com a casca coberta de musgo.

“Eu não corri atrás de você por tanto tempo apenas para brincar de Esconde-Esconde.”

A pressão do meu aperto sobre a pistola prepara a rajada, e o fluido magnético prepara as bobinas do cano em antecipação ao tiro. A silhueta escondida atrás da árvore impressionante tosse nervosa, tentando recuperar o fôlego após a sua fuga precipitada.

“É justo,” ele murmura. “mas eu não gosto de passar por um torii quando não estou certo de voltar por ele. É tudo uma questão de superstição.”

O homem sai do seu esconderijo, seu rosto magro coberto de suor, suas roupas de grife com logotipos fluorescentes apagados devido à chuva. Seu rosto sombrio é emoldurado por um cabelo cortado rente, com faixas brancas ocasionais; seu pescoço mostra parte de uma tatuagem impressionante, que muito provavelmente cobre todo seu corpo.

“Bonita irezumi,” eu digo, indicando sua tatuagem. “Você é descendente de samurais ou dos Bosozoku das guangues orientais?”

Ele me olha fixamente, segurando debaixo do braço um pacote de papel pardo grosso, escurecido pela umidade.

“Um pouco de cada, digamos. Gosto de honrar meus ancestrais.”

“O que você estava fazendo detrás daquela lixeira?”

“Dando uma mijada.”

Não estou com disposição para brincadeiras, então disparo com minha Pistola Elétrica na árvore acima de nós. A descarga ilumina a cena, seguida da explosão de um imenso galho bem em cima dele. Eu reconfiguro a arma; Dessa vez, está mirando no alvo correto. Ele tenta se manter calmo, apesar do forte cheiro da madeira queimada pelo disparo.

“Certo, certo, eu estava lá para vê-la.”

“Nós não nos conhecemos.”

“Não. Eu sonhei com você”, ele responde, calmamente. “Mas eu não esperava esse tipo de recepção. Fiquei com medo.”

“Sinto muitíssimo, mas quando um cara está me espionando na cena de um crime cometido por um assassino em série, isso tende a me deixar nervosa. Por que você não veio me ver? Nós poderíamos ter evitado uma corrida por toda Akihabara!”

“… E dizer o quê? Que eu tenho premonições, e que eu tenho sonhado com você todas as noites desde o ataque, Otawara-san?”

“Maldição! Foi você que me acertou?”

“Vê? É exatamente isso que eu sabia que você diria.” Ele falou, com um ar derrotado.

Calmamente, o jovem coloca o pacote delicadamente no chão, mostrando uma outra corda tecida com palha de arroz sob as várias camadas de papel. Debaixo delas, uma caixa bem laqueada brilha suavemente na chuva.

“Onde você encontrou isso?”

“Na frente da minha porta, essa manhã,” ele diz, firmemente.

“A Shimenawa estava ali pelo vestibulo, e a caixa estava no chão. Eu sei o que isso significa para você, Otawara-san.”

“Porque?”

“Porque eu sonhei com isso. Foi por isso que eu vim. Mas eu nunca estou certo de que minhas visões são reais, ou que tudo isso não são apenas alucinações causadas pelos demônios que assombram esse mundo.”

“Demônios?”

“Não me diga que está surpresa, você é uma policial. Você só precisa abrir os olhos e os ouvidos para notar que as coisas estão ficando estranhas. Já ouvi pessoas falando sobre paredes que gritam no distrito de Waseda, de um homem reduzido à uma pilha de ossos em sua loja em Miyukidori, no 13º Distrito em Ikebukuro sendo atacado por uma multidão faminta…”

Coloco cautelosamente minha pistola no coldre, curvando-me para afastar os pedaços de papel da caixa azeviche. Ela não possui nenhum sistema de abertura visível, a coisa toda feita a partir de um único bloco por um artesão experiente. Meus dedos encontram um kanji gravado na parte superior, cujas curvas revelam seu significado, apesar da pouca luz: Oni. Com um clique que eu mal percebo, a caixa de shiki finalmente decide abrir, revelando uma antiga pistola 9mm, cuidadosamente envolta num pedaço de seda vermelha. Escurecida pelo tempo, a arma é entalhada com vários símbolos e amuletos místicos associados à energia Ki. Seu pente está vazio’.

“O que quer que eu faça com essa velharia?”

“Não sei,” responde o desconhecido, ao mesmo tempo que a voz de Gonshiro finalmente se faz ouvir na avenida. Arquejando, meu parceiro nos alcança, seu rosto corado pela corrida através do bairro, sem conseguir recuperar o fôlego. Parado ali, olhando para o chão, ele acaba derrubando casualmente os dedos e dedões decepados que estavam em sua mão. As coisas rolam pelo chão na chuva, derramando o pouco sangue que restou nelas em uma poça suja.

“Ei, o que é toda essa nojeira!?” grita o jovem, ao ver os dedos espalhados pelo chão. Minha atenção é imediatamente atraída por um deles, caído por acaso próximo às botas reforçadas de Gonshiro. Um grande polegar com uma unha bem cuidada e um polimento violeta suave. Os outros são mais pálidos, mais esguios e desprovidos de quaisquer cosméticos.

“Droga, Gonshiro! Você analisou esse?”

“Huh?” ele tosse entre os arquejos, “não, porquê?”

“Porque acho que esse não pertence aos outros.”

Meu parceiro abaixa seu visor novamente e penetra cada dedo decepado com uma fina agulha. O hemograma é exibido rapidamente em uma das várias telas escamoteáveis de seu capacete.

“Você está certa. Este não é dela. Que merda é essa, Nao? Desde quando é que ele vem colecionando polegares e dedos?”

“Desde que ele começou sua coleção de olhos, suponho.”

“Quê?”

“Nem eu nem você nos perguntamos porque ele teria arrancado um dos olhos da moça. Não está no modus operandi do Escapelador remover qualquer coisa que não seja tirar a pele dos músculos, e muito menos deixar como assinatura polegares e dedos de pessoas diferentes.”

“Mas o que você acha que ele faria com um olho e um polegar, Nao?” pergunta Gonshiro ansiosamente.

A voz do estranho quebra o ritmo incoerente de nossa discussão, com um tom neutro e sereno.

“Pessoalmente, essas são exatamente duas coisas que eu preciso para abrir a porta do meu apartamento.”

De um só golpe, o sangue sobe para meu rosto, e uma raiva insuportável toma conta de mim.

“Ele só precisava de um lugar para ir! Ele está na casa dela! Rápido!

4 comentários sobre “Kuro: Cidade Elétrica

  1. Para quem quiser experimentar o jogo, sábado, 14 de Junho (2014, vou mestrar no Encontro Mensal do Saia da Masmorra, aqui no Rio de Janeiro.
    Visconde de Piraja 207 lj 316
    A mesa começa por volta de 14:30, mas a partir de 14:00 já vou explicando o sistema e ambientação para quem quiser.

    Abração.

    (Bigg, valeu pelos links e parabéns pela tradução, ficou bem bacana).

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